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Noticia no JN - A judicatura e os partidos políticos

Esta semana os dois principais partidos políticos em Espanha chegaram a um acordo para renovar o Tribunal Constitucional (cinco magistrados terão de ser nomeados em breve) e o órgão de governança da judicatura, o Consejo General del Poder Judicial (20 vogais a serem eleitos pelas cortes).

 

A polarização partidária da anterior legislatura tinha impedido qualquer possibilidade de convergência entre o PP e o PSOE, pelo que o conselho dos juízes encontra-se em gestão vai para dois anos (devia ter sido renovado em Novembro de 2006) e o Tribunal Constitucional tem sérios problemas de legitimidade (incluindo uma polémica lei aprovada pelo PSOE e seus aliados para estender o mandato da presidente do mesmo). O acordo agora anunciado põe fim a uma situação intolerável na justiça espanhola a que a disputa irresponsável entre os principais partidos políticos tinha conduzido.

Contudo, como aliás já foi expressado pelo insuspeito El Pais, o acordo entre o PP e o PSOE para a renovação do conselho da judicatura é bastante preocupante. Dos 20 vogais, o PP e o PSOE ficam com nove cada um (desta forma assegurando a cada partido uma minoria de bloqueio no conselho), e os restantes dois são um nacionalista da Catalunha (CiU) e outro do País Basco (PNV). Confirma-se pois a prática de quotas partidárias já aliás utilizada anteriormente. Mas o que impressiona é o currículo dos vintes eleitos. Quase todos apenas se salientam pelos importantes serviços prestados ao respectivo partido. Mesmo os magistrados de carreira escolhidos são conhecidos pelos variados casos que julgaram com repercussão política. Praticamente nenhum é conhecido pela sua independência ou mérito curricular. Definitivamente os altos cargos na justiça espanhola estão transformados em lugares de job for the boys. Tanto que ambos os partidos tiveram de sair a público para dizer que não é bem assim.

O fenómeno da partidarização dos altos cargos na justiça encontra também cada vez mais exemplos em Portugal, com os recentes episódios no Tribunal Constitucional bem como com a nomeação de magistrados para os mais variados cargos de natureza política. Trata-se pois de uma mudança importante quer em Portugal, quer em Espanha. E parece-me que não é por acaso que isto acontece.

Por um lado, é evidente que o poder político democrático nunca confiou no poder judicial, herdado da ditadura e conservador por natureza. Contudo a legitimidade do novo regime político em muito dependia do aparente respeito pela separação de poderes (supostamente inexistente durante a ditadura). Durante a fase de consolidação da democracia, os partidos políticos evitaram imiscuir-se directamente na justiça e mantiveram a farsa do respeito pelo poder judicial (evidentemente que ao mesmo tempo continuaram a expandir o poder do legislador esquizofrénico ao ponto de hoje termos uma produção legislativa caótica). Com a ditadura esquecida nos manuais da história e a supremacia do novo regime, o cuidado com a separação de poderes foi sendo olvidado. Tal como noutras áreas da nossa sociedade, o apetite voraz dos aparelhos partidários do PS e do PSD (ou do PP e do PSOE em Espanha) deixou de ser compatível com qualquer prurido ou farsa de "meritocracia". Também na justiça, a filiação partidária passou a ser o primeiro critério de escolha.

Mas à "vontade de comer" pelos aparelhos partidários juntou-se a importância que esta "comida" passou a ter para as elites políticas. Ao longo das últimas décadas multiplicaram-se os problemas dos agentes políticos com a justiça. Desde a corrupção e outros casos famosos que por aí andam até ao uso dos tribunais pelos cidadãos para limitar a discricionariedade dos actos políticos. Legislar deixou de ser suficiente para controlar ou contornar a judicatura. Atropelam-se as mais elementares regras da separação de poderes para minimizar danos políticos.

A progressiva partidarização dos altos cargos da justiça em Espanha e em Portugal terá consequências muito nefastas para a qualidade da democracia. Não porque isso seja diferente de outros países (como, por exemplo, os Estados Unidos ou a Alemanha), mas porque não existem na nossa cultura democrática os mecanismos de equilíbrio que existem nesses outros países de forma a minimizar esses efeitos nefastos. Certamente o futuro da justiça em Portugal e em Espanha neste momento não parece ser risonho.

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